Carta ao Leitor: Em nome de Deus

LÁ E CÁ - Edir Macedo, da Igreja Universal, com Lula em 2007 e com Bolsonaro agora: projeto político com base na religião – Bruno Miranda/Folha Imagem/Alan Santos/PR Leia mais em: https://veja.abril.com.br/politica/carta-ao-leitor-em-nome-de-deus/

Desde a Constituição de 1891, o Brasil é uma nação laica, de separação entre o Estado e a Igreja. Diz a Carta de 1988: “É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança…”. A laicidade, inspirada nos preceitos da Revolução Francesa — “liberdade, igualdade e fraternidade” —, é uma conquista civilizatória, sinônimo de respeito, especialmente em um país profundamente religioso. A ideia é que, em relação à fé das pessoas, o governo nada imponha e trate apenas de defender todos os credos, sem distinção. Esse é um dos pilares da democracia. Curiosamente, na própria Bíblia, atribui-se a Jesus Cristo a frase “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”, um resumo brilhante da necessidade de separação entre os assuntos seculares e religiosos.

A distância estabelecida por lei, contudo, nunca impediu que a política e a religião se misturassem. Nos anos 1970 e 1980, as Comunidades Eclesiais de Base, essencialmente católicas, ancoradas na Teologia da Libertação, ajudaram a ampliar as vozes de quem gritava contra a ditadura militar — e, assim que as eleições voltaram a acontecer, os púlpitos serviram de plataforma para angariar adesões. Mas não era exatamente um projeto de poder. No início da década de 90, com a queda do número de fiéis católicos e o espraiamento das nomenclaturas neopentecostais, deu-se um novo e decisivo passo nessa direção: a Igreja Universal do Reino de Deus, liderada por Edir Macedo, pôs em andamento um plano eleitoral, associando-se a uma emissora de televisão e lançando candidatos ao Parlamento. O movimento nunca parou de se expandir. De 2018 para 2022 houve um crescimento de 26% de candidaturas que usam denominações evangélicas — neste pleito serão 730 candidatos com a alcunha de pastor, bispo, missionário e apóstolo, entre outros títulos religiosos.

Os evangélicos, que representam 27% do eleitorado brasileiro — ante 50% dos católicos —, têm aumentado significativamente sua influência na cena política brasileira, dado o afinco com que apoiam ou rechaçam as decisões de Brasília (na maioria das situações, atuando em conjunto). Nos últimos quatro anos, a Presidência de Jair Bolsonaro — com o lema “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” — tornou mais fluidas as fronteiras entre os dois territórios, o da razão e o da fé. Ancorado numa pauta de costumes conservadora, Bolsonaro promoveu e foi promovido pelas forças evangélicas, em uma toada que, às vezes, fez mal ao país. Essa confusão chegou a ponto de prejudicar, por exemplo, a aceitação das vacinas contra a Covid-19, sem as quais não estaríamos neste momento mais tranquilo da pandemia.

Com a proximidade da eleição, uma nova guerra santa se anuncia. A mais recente pesquisa do Datafolha, de agosto, aponta hoje o presidente com 49% das intenções de voto entre evangélicos, contra 32% de Lula — em maio a diferença era menor, de 39% para 36%. Lula, que em seus comícios tem adotado a correta postura a favor do Estado laico, simultânea e contraditoriamente acena para os pentecostais, que, aliás, estiveram a seu lado nas eleições de 2002 e 2006. Ciente da importância desse segmento, a campanha do candidato do PT já criou contas nas redes sociais destinadas a esse eleitorado, mas está bem distante da máquina montada a favor de Bolsonaro. Trata-se de uma poderosa estrutura, com mais de 100 milhões de seguidores, voltada a um só objetivo: conseguir cada vez mais votos. Para onde quer que vá o Brasil precisa estar firme no isolamento dos interesses do Estado e das igrejas, sem privilégios a qualquer grupo. Caso contrário, podemos entrar numa era de grande retrocesso.

Publicado em VEJA de 31 de agosto de 2022, edição nº 2804

LÁ E CÁ - Edir Macedo, da Igreja Universal, com Lula em 2007 e com Bolsonaro agora: projeto político com base na religião – Bruno Miranda/Folha Imagem/Alan Santos/PR
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